23/06/2016

A Alfabetização (Isabel Solé)

   "Com frequência, ao falar de alfabetização, este termo é assimilado ao domínio dos procedimentos de leitura e escrita. Talvez para você “alfabetização” signifique exatamente isso. Embora não pretenda convencê-lo de outra coisa, gostaria de lhe explicar por que esta definição do processo me parece restritiva e mesmo sutilmente enganosa.
     A alfabetização é um processo através do qual as pessoas aprendem a ler e a escrever. Estes procedimentos, porém, vão muito além de certas técnicas de translação da linguagem oral para a linguagem escrita. O domínio da leitura e da escrita pressupõe o aumento do domínio da linguagem oral, da consciência metalinguística (isto é, da capacidade de manipular e refletir intencionalmente sobre a linguagem; deveremos nos ocupar dele ao longo deste capítulo) e repercute diretamente nos processos cognitivos envolvidos nas tarefas que enfrentamos (para não mencionar o que significam em nível de inserção e atuação social). Tolchinky (1990) analisou recentemente alguns destes aspectos.
    Por outro lado, a restrição da noção de alfabetização à linguagem escrita pode ser fruto de uma interpretação errônea, segundo a qual esta requer instrução formal, enquanto a linguagem oral se desenvolve de forma natural; isto explica que exista um processo concreto, o da alfabetização, que integra essa instrução e seu resultado.
    O errôneo da interpretação anterior não recai precisamente no fato de se considerar que a linguagem escrita requer uma instrução explícita, mas em considerar que a linguagem oral a não requer. Em ambos os casos é necessária a presença de um adulto, de um meio social, que ajude a criança em um processo de aprendizagem que ocorre na interação educativa, seja de tipo formal, como acontece na escola, seja informal, como no caso da família.
    Gostaria de acrescentar também que é frequente apontar a repercussão da linguagem oral na aprendizagem do sistema da língua escrita, e com isso todos concordamos. Entretanto, o que a definição tradicional de “alfabetização” não acolhe é a repercussão do segundo sobre o primeiro. É provável que você concorde se eu disser que as pessoas que aprenderam a ler e a escrever costumam ser usuários mais competentes da linguagem – de todo a linguagem – do que os que não passaram por essa aprendizagem.
    Por isso proponho a definição de Garton e Pratt 91991) como a mais ajustada àquilo que realmente seria a alfabetização:

“[...] O domínio da linguagem falada e leitura e da escrita [...]. Uma pessoa alfabetizada tem a capacidade de falar, ler e escrever com outra pessoa e a consecução da alfabetização implica aprender a falar, ler e escrever de forma competente (p. 19-20)”.

   É lógico que existem diferenças substanciais entre a linguagem oral e a linguagem escrita, que não serão tratadas por enquanto. Mas o fato de dispor de uma definição ampla de alfabetização pode ser útil quando se pretende avançar na compreensão do processo que nos leva a ser leitores eficientes.
   Neste processo, um marco fundamental é o constituído pela aprendizagem das habilidades de decodificação. Devo lhe confessar – acho que agora já posso fazer isso – que a abordagem deste tema sempre me preocupa. São tantas e apaixonadas as discussões que se suscitam sobre o fato da necessidade de ensinar ou não tais habilidades e, em caso afirmativo, sobre a forma em que é preciso fazê-lo, que não posso evitar uma certa prevenção na hora de manifestar-me em torno de um assunto polêmico como esse. No entanto, darei minha opinião".


SOLÉ, Isabel. Alfabetização. In: ______. Estratégias de leitura. Porto Alegre: Artmed, 1998. p. 50-51.


Nenhum comentário:

Postar um comentário